terça-feira, março 21, 2023
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Presidencialismo “em vertigem”

Por Alex Fiúza de Mello, no blog do Lúcio Flávio Pinto

 Descontadas as ilusões inerentes à pureza da Teoria, pode-se dizer que “democracia”, em seu sentido conceitual moderno, significa um tipo de sistema político em que o poder, em última instância, é prerrogativa exclusiva do povo, o único soberano.

É o povo que, sob regime democrático, deve induzir e controlar a gestão do Estado em favor dos interesses da maioria da população: ora por meio de mecanismos de manifestação direta (referendos, plebiscitos e outros instrumentos legais), ora indireta (eleição de representantes temporários às funções de comando), tendo sempre em vista a realização das aspirações do conjunto majoritário da sociedade – incluídos os direitos das minorias.

As “regras do jogo”, nessa perspectiva, devem garantir a efetivação dos princípios que fundamentam a forma da organização política, enquanto que o sentido republicano do exercício do poder, os valores que a orientam: a vontade da maioria. Não pode haver, nesse âmbito, tergiversações, sob pena de descumprimento do pacto social que confere validade ao ordenamento político, via-de-regra legitimado em Carta Constitucional. O que vale para um, vale para todos; e o que vale para todos, vale para cada um. Sem exceções.

O sistema de governo que vige, hoje, no Brasil, circunscrito às prescrições e regras democráticas, é o presidencialismo – que derrotou, em plebiscito (1993), as opções parlamentarista e monárquica de governo. Portanto, por vontade expressa e indubitável do povo brasileiro, ficou ratificado, desde então – nos rastros da tradição –, que o comando do governo é prerrogativa exclusiva do Presidente da República, o chefe do Poder Executivo.

É a ele que cabe, com plena legalidade e legitimidade, dentre outras atribuições, a administração do orçamento do país (constituído pelos impostos pagos pelos cidadãos), com toda a autoridade e responsabilidade que lhe são conferidas pela eleição majoritária e pela Constituição. Apenas ao Presidente, repita-se – e, por delegação deste, aos Ministros de Estado –, compete essa função. A ninguém mais!

Qualquer tentativa de restrição, bloqueio ou usurpação desse direito inalienável de governança, diretamente atribuído, pela sociedade, à Presidência da República, implica em grave traição – explícita ou velada – à vontade popular, com perigosa ameaça de ruptura ao Estado de Direito.

A clássica separação dos Poderes – Executivo / Legislativo / Judiciário –, instituída a partir do século XVIII na maioria das constituições modernas – sob inspiração filosófica de O Espírito das Leis, de Montesquieu (1748) –, desde a origem foi concebida, fundamentalmente, como estratégia de contrapesos antiautoritários em favor da estabilidade da ordem democrática, jamais como fermentação de espaços ou instâncias estatais distintas para disputa de mando, redundando em desequilíbrio institucional.

Segundo esse modelo, sob o formato presidencialista de governo, não é atribuição do Parlamento interferir ou avocar para si a execução do orçamento público, imiscuindo-se na função de outro Poder, constituído justamente para essa finalidade. Trata-se, tal pretensão, de um desvio de viés totalitário, incongruente com os estatutos básicos do ordenamento democrático contemporâneo, além de motivo para o estabelecimento de crise política de grandes proporções.

No caso brasileiro, ao Legislativo compete, unicamente, aprovar o orçamento e supervisionar o Executivo no devido cumprimento dos objetivos e metas ali consagrados: seja no Plano Plurianual, seja na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) ou na Lei Orçamentária Anual (LOA), zelando para que o interesse maior da sociedade – teoricamente expresso nessas determinações legais – seja efetivado em sua justa medida. Nada mais do que isso – o que já é bastante!

A recente tentativa do Congresso Nacional de se sobrepor ao Executivo na execução da maior parte da fatia ainda não carimbada do Orçamento da União com despesas obrigatórias, conforme definido em projeto de lei de dezembro de 2019 (que regulamenta o exercício das despesas para 2020), representa um claro atentado de golpe à Constituição.

Além dos RS$ 22 bilhões das emendas parlamentares (individuais e de bancada) já previstos, constantes do chamado “orçamento impositivo” – sem qualquer domínio e controle por parte do Governo –, agora se pretende criar outros dois tipos de emendas (as de Comissão e as do Relator), com a reserva de mais R$ 30 bilhões para ser dividido entre deputados e senadores, condição que retira do Poder Executivo, em definitivo, o mínimo que lhe restava (RS$ 17 bilhões) como margem de manobra para o item “investimento”, decretando-se, em definitivo, a falência de sua mais primordial função, prevista em lei, e razão de sua existência: aquela de governar.

Trata-se de um verdadeiro sequestro do dinheiro público por uma instância do Estado que não tem prerrogativa para tal, fato que deságua – desde que derrubado o veto presidencial à iniciativa – na transformação (ilegítima) do presidencialismo num “parlamentarismo branco”, com transferência de domínio sobre o uso dos recursos públicos, num inequívoco golpe à Carta Magna e à vontade popular.

Na prática, o país passaria a ser governado não mais por um Presidente, eleito à função pela ampla maioria da população, mas por um “Primeiro-Ministro” – no caso, Rodrigo Maia –, em total desacordo com as “regras do jogo”. Não é por acaso, portanto, que mais uma vez a sociedade se mobiliza por meio das redes sociais para manifestar nas ruas o seu repúdio contra mais uma tentativa de golpe contra o Estado de Direito e a democracia, justo por quem deveria – em nome do povo – defende-los.

Não são os youtubers ou os influencers que estão a conspirar contra a ordem vigente; mas os próprios congressistas (deputados e senadores) que não aceitam o resultado das urnas e a perda de poder no âmbito de um governo que não tem cedido às tradicionais chantagens de bastidores ou às barganhas de cargos (e orçamentos ministeriais) em troca de votos no Congresso.

No momento em que ex-presidiários, condenados pela Justiça, réus da Lava Jato, suspeitos de caixa dois, ministros do Supremo envolvidos em indisfarçável ativismo político, “raposas” do Congresso (etc.) se unem, com o apoio interesseiro e parcial da grande mídia, para acusar as manifestações do dia 15 de março como um “atentado às instituições e à democracia”, invertendo a lógica dos fatos, revela-se, mais uma vez, com toda a clareza, quem são os reais incomodados com a liberdade de expressão e de organização.

Quem está, de fato, contra o povo, negando-lhe o direito ao pleno exercício da soberania – que deveria ser unicamente sua! Não. Não é o povo que ameaça, com mobilização, a democracia. Ao contrário: a liberdade de manifestação – sobretudo expressa em movimentos de massa – é a própria democracia!

Como dizia Abraham Lincoln: “Nós, os cidadãos, somos os legítimos senhores do Congresso e dos tribunais, não para derrubar a Constituição, mas aqueles homens que a pervertem”. Os inimigos da democracia, portanto, são outros! São aqueles que não aceitam o resultado das urnas, quando lhes é desfavorável; as “regras do jogo”, quando lhes são incômodas; e os que usam dos cargos públicos para obter “vantagens cabulosas” (dinheiro e poder) em proveito próprio. Ponto. Simples, assim, de entender. O resto é conversa fiada.

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