Por João Carlos*
Ah,! A desmesurada família humana, capaz dos atos mais nobres e que nos engrandecem enquanto espécie e ao mesmo tempo dos mais mesquinhos e mórbidos, prá dizer o mínimo, e que nem por isso nos torna menos humanos, apenas revelam facetas de nossos comportamentos desvelando muitas vezes algo que queremos manter oculto, afinal humanos somos.
Certa vez, há muito, muito tempo, ao caminhar pelo centro de Belém, a maior capital do mundo banhada pelo Sol do equador, e que me viu nascer, parei em uma de suas belas praças, a da República, para descansar um pouco, me abrigar do sol inclemente e da temperatura abafada e é claro, também comer algumas mangas.
Ah, as mangueiras de Belém, plantadas no início do século passado, findaram por tornarem-se símbolos de nossa cidade, a das mangueiras, dando-nos sombras e claro, mangas.
Era por volta das 16:00hrs, e havia chovido, sempre chove em Belém, a grama estava ainda levemente úmida, e as pessoas, lentamente, voltavam a caminhar e a ocupar as ruas, bancos e lojas do comércio e principalmente a juntar as mangas que a chuva havia derrubado. O Sol, lentamente ia se pondo por trás da imensa baia do Guajará que circunda a cidade.
Era uma festa: Casais de namorados, mendigos, velhos e principalmente crianças disputavam cada palmo da praça atrás dos frutos e de sombras.
Abriguei-me sob uma imensa árvore, já centenária, mas ainda capaz de cumprir sua sina de arvore frutífera e frondosa, peguei algumas, só umas dez e sentei-me à sua sombra e iniciei meu banquete. Não era nenhuma festa de Babette, mas para nós, paraenses e comedores de mangas, era suficiente.
Foi então que apareceu um cara, creio que era chileno ou algo parecido, pois falava espanhol e carregava uma mochila enorme nas costas. Era um desses andarilhos que vagam pelo mundo, solitários, carregando suas dores e suas lembranças dentro de suas mochilas surradas. Sentou-se a meu lado, me lançou um sorriso fechado, acompanhado de um leve movimento de cabeça e murmurou um buenos dias. Abriu a mochila e de dentro tirou uma série de apetrechos usados em apresentações de rua: Facões, muchachos, diavolos, pinos e uma corda, daquelas que se usam para andar sobre elas, se equilibrando, amarrando as suas extremidades em algo que sustente o seu próprio peso.
Fiquei observando, pois ele usou a mangueira em que eu estava à sombra para prender uma das extremidades da corda. Fixou-as bem, subiu nela, desceu, esticou de novo e resolveu aumentar um pouco mais a altura, creio que devia estar a um metro e meio do chão. Deixou um chapéu próximo a mim e assim meio que com um olhar fez menção como se fosse para eu reparar o chapéu e então começou a fazer algumas acrobacias iniciais. Começou a juntar gente, causando uma pequena aglomeração, ávidos por um espetáculo.
Pronto, o circo estava armado, ator, palco, plateia, enredo e cenário, faltava o desenrolar da história.
E que comece o show da desmesurada família humana!
De repente, trovões e raios cortaram os céu. Parece que vai chover…. Belém é assim mesmo, o céu está limpo e lindo, tudo calmo e tranquilo, e então, do nada o céu desaba…
Ele subia e descia da corda, dava saltos, se equilibrava, ficava só numa perna e, pasmem! ficava na corda de ponta-cabeca, dava um salto e caia em pé no chão.
Um artista o cara!!!
A multidão, sim, agora já havia uma multidão, aplaudia e generosamente depositava dinheiro no chapéu. Eu, admirado e incomodado, pois não gosto de multidão, e haviam violado meu nobre sossego, apenas observava e continuava comendo minha doces mangas, que por sinal estavam acabando.
Tive então uma pressentimento de que aquilo ia acabar mal. Ou talvez não, o artista daria seu espetáculo, a multidão aplaudiria, e retribuiria é claro, enchendo o chapéu com mais doações, eu chuparia mais umas mangas e todos iríamos pra casa.
– Parece que vai chover, falou alguém, já com uma certa impaciência. Foi então que o artista resolveu aumentar a altura para uns três metros…
Subiu por um dos troncos e prendeu a corda em uma das extremidades, desceu, pegou a outra ponta, amarrou-a na outra extremidade e dali mesmo fez o teste caminhando com uma rapidez incrível de uma ponta a outra, deu um salto mortal fazendo firula e caiu em pé no chão.
Perfeito!
Recebeu aplausos, muitos aplausos e passou o chapéu por entre a plateia.
Mais doações e risos e mais aplausos.
Pegou uma garrafinha de água, bebeu e fazendo uma reverência circense disse:
– Y ahora, El Gran finale!
Tirou uma venda dos bolsos, atou-a aos olhos , vedando-os completamente, eu já estava na última manga. Mas, como já disse, Belém é cidade chuvosa, sempre chove, de repente assim, do nada a chuva vem, traiçoeira, até já acostumamos com isso, virou Cultura!
Pois é: Londres não tem sua neblina?, São Paulo não tem Garoa? Belém tem chuva! e realmente, choveu.
Ah, o equilibrista subiu na corda e perdeu o equilíbrio, creio que por causa do vento que veio com a chuva e balançou o galho da mangueira, mas já havia pouca gente. Haviam corrido para as marquises e não puderam ver o Gran finale. Ao cair, o pobre hermano latino americano sem dinheiro no banco e sem parentes importantes, quebrou o pescoço e ficou ainda agonizando alguns minutos.
Pobre artista! Sua morte foi um espetáculo, seu maior ato em sua mais brilhante apresentação.
Durante algum tempo ficaram alguns curiosos ao redor do cadáver que alguém cobriu com um jornal e uma folha de bananeira vinda não sei de onde.
A chuva dava ainda tons mais melancólicos ao espetáculo trágico. Então um a um os espectadores se foram e só então aproximei-me.
O jornal estava manchado de sangue e havia rasgado-se, deixando exposto uma parte de seu rosto na qual dava pra ver seus olhos abertos, acocorei-me bem perto e fiquei a fitá-lo e a pensar sobre o sentido da vida e a banalidade da morte e de como um vento forte em uma chuva fina derruba muitas mangas, juntei mais uma cinco e comecei a chupá-las.
Fquei ali algum tempo, até que foi escurecendo e aquela contemplação foi ficando monótona.
Até a morte pode ser monótona, quando muito contemplada.
Som alto de sirene de ambulância, juntei mais três mangas, ajeitei a folha de bananeira no rosto do infeliz e fui embora atrás de outro espetáculo.
Serei eu desumano? Ou desmesuradamente humano?
*João Carlos é professor de língua Espanhola e passa a partir de hoje a ser um dos nossos colaboradores, assinando sua coluna de crônicas neste portal.